domingo, 30 de junho de 2013

O CANDIDATO

Imagem: David Anthony Hummer


Esteve aqui, antes da eleição. Tomou café no vidrinho, comeu torta no potinho, brincou com o cusco magrinho – ainda vivo. Fumou palheiro sentado no cepo, disse que voltaria…



quinta-feira, 27 de junho de 2013

SOBRE UMA VELHA ESPANHOLA

Imagem: Georgia O’keeffe


A PAIXÃO é uma velha espanhola
com verve flamenca
que de bailar ao som de castanholas
tem o buço suado
POR SER PAIXÃO tem arroubos de suicídio
de maldizer a vida
quebrar copos
pratos
e
amassar panelas
POR SER VELHA tem braços abertos de abuela
argolas douradas
pendendo das orelhas
e
tinta disfarçando o branco da longa trança
E POR SER PAIXÃO tudo é passageiro em sua alma
tristeza assim como vem vai
e
alegria como vai vem
incendiando-lhe a casa
as gentes
e
o sorriso: lábios rebocados de carmim
ouve
de novo as castanholas…




domingo, 23 de junho de 2013

DONDE BROTA O SALOBRE

Fotografia: Leonardo Brasiliense




ratos mortos
secos
entre as frinchas
da parede tosca do velho rancho
soalho cedido
tomado pelo caruncho
crânio de boi
pendurado na cerca
arrodeando ao sabor do vento
carranca a espantar fantasmas
como se algum quisesse entrar
há tempos todos se foram
humanos e assombros
só um lamento se ouve
do fundo do poço sem fundo
donde brota o salobre



sexta-feira, 21 de junho de 2013

A VELHA YOLANDA

 Imagem: Ron Mueck






De cada canto da boca
pendia um vinco
por onde escorriam fios de baba
que acabavam em gotas à altura do queixo
Velha Yolanda
velha bugra
eu a olhava bem na cara
e
gurizote
pensava:
Não posso me esquecer de nunca matear com ela…



terça-feira, 18 de junho de 2013

PROFANO




Imagem: Cínthia Casagrande



Nas costas
o peso do nome que carrego
e um olhar vazado
dèjá vu
me escorre sob as lentes
Sou profano
vil e covarde
Ando sem rumo
apoiado em meu terceiro tentáculo
Piso agora com pés cansados em ti
Por minha demência
fui expulso do presépio
e esta presbiopsia me desatina




sexta-feira, 14 de junho de 2013

CHÃO DE PREGOS EM BRASA



Imagem da internet




ERA um chão de pregos em brasa. Na medida em que corria, os pregos cravavam nas solas descalças dos meus pés, que já estavam que era uma ferida só. Não sei se o que doía mais era o enterrar dos pregos ou o queimar dos pregos. Corria desesperadamente e na medida em que dava um passo à frente, o chão atrás de mim ia desmoronando, abrindo um imenso precipício. Era uma sensação terrível, aflitiva, e eu estava muito cansado, quase que não aguentando a carreira contra o tempo e contra o chão que ruía. E tinha os pregos que me causavam dor sobre-humana. Foi quando ouvi a voz que me disse que eu já poderia fazer uso de minhas asas…




quarta-feira, 12 de junho de 2013

Poema sem título 03






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domingo, 9 de junho de 2013

O BICHO

Imagem: René Magritte




como se chama esse bicho?
deus.
come muito?
depende de você.
de que tamanho ele fica?
do tamanho da gaiola que você destinar a ele.
e se eu deixá-lo livre?
será o diabo.




quinta-feira, 6 de junho de 2013

ALGO MÁTRIO

Imagem: Gustave Caillebotte



Para Luis Fernando Ferreira




Senhoras baforando neblina
varrem as calçadas

Do outro lado da rua
um velhinho bem magrinho
fraquinho
bem magrinho
adunco
bem magrinho
passeia com um cão

O chafariz

NÃO PISE NA GRAMA

As camélias no parque
(há tempos não via camélias)
me remetem à casa materna

NÃO PISE NA GRAMA

Um breve fechar de olhos
dura uma eternidade
parece que ando sonâmbulo
tenho sede
I’m tired...

Olho para o céu
Tenho a impressão
de que os deuses não estão lá

Mas não faz diferença
também não estou sentindo
minha alma em mim
(deve ter saído para descansar
– de mim)
Vem vindo
vindo
vindo
mais um breve fechar de olhos
E este bem mais breve
Tenho um gosto ruim
na boca seca dos líquidos de ontem
I’m tired
I’m tired...
E o velhinho
aquele bem magrinho
fraquinho
bem magrinho
adunco
bem magrinho
ficou para trás
tão longe longe
que agora só o vejo
entre um e outro roçar de pálpebras
com o olhar da lembrança...









terça-feira, 4 de junho de 2013

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS




Imagem: Plínio Fuentes






Boa-tarde!
Tarde!
Eu procuro uma senhora de nome Injustiça, o amigo a conhece?
Conheço não.
Ela anda sempre vestida de negro, é mais ou menos dessa altura, assim, e vive em voltas com pesos e medidas: dois pesos e duas medidas.
Ah! A senhora carrancuda que tem um comércio de adulteração de balanças... Mas aqui o povo a trata por Realidade...



domingo, 2 de junho de 2013

LABIRINTO

Fotografia de Cínthia Casagrande (BH)





Eu caminho no meio do povo
As calçadas repletas de gente
Gente que vai
Gente que vem
Gente que olha
Que pára
Que passa
Gente sem graça
Gente assim
Cabelos compridos
Cabeças raspadas
(skinheads)
Cabelos coloridos
Brincos em orelhas
Narizes
Pessoas assim
Pessoas tristes
Felizes
Sinal verde
Sinal vermelho
Siga
Pare
STOP
A moça do outdoor sorri pra mim
Placas luminosas
Anúncios tentadores
Beba isto
Coma aquilo
Fume
Símbolos de uma geração pichadora rabiscados nos muros
Grades que protegem casas
E separam seus donos dos demais mortais
Eu me fundo no povo
É tanta gente
Eu me confundo
Stop
Don’t walk
Walk
É gente que vai
Gente que vem
É tanta gente que eu nem sei
E a moça do outdoor insiste em sorrir pra mim
O que será que se passa naquela mente interiorana aqui nas ruas da Capital?
E a moça do outdoor insiste em sorrir pra mim
Será que dá tempo para um café expresso
Antes do Expresso 170 passar repleto de gente?
Não sei
Acho que não sei viver assim
Eu me fundo no povo
É tanta gente
Eu me confundo de novo
Por que aquele sujeito me olha esquisito no ônibus?
Eu não sei
A moça do outdoor tinha um sorriso tão bonito
“Eu sou apenas um rapaz latino-americano”
Diz a canção que ouço
Vinda não sei de onde
E
Que me faz lembrar
De tudo o que sou
E do muito que ainda falta pra conquistar
Aqui no meio do povo
Não sei
Acho que não sei viver assim
Acho que me perdi
Vou chorar
Aqui no meio do povo
São tantas imagens refletidas nas vitrines
Sou eu a passar
Diante do olhar triste
Do tetraplégico que vende bilhetes de loteria
Ah!
Como seria bom se comprasse um premiado
São as prostitutas da Rua 28
Sou eu
Feito cão vira-lata
Sem saber direito aonde ir
É gente que vai
Gente que vem
É tanta gente que eu nem sei
É a saudade de casa a apertar
(e pensar que deixei minha mãe chorando no portão)
É a fumaça negra dos canos de descarga suspensa no ar
É gente que vai
Gente que vem
É tanta gente que eu nem sei
Não sei
Acho que não sei viver assim
Acho que me perdi
Vou chorar de novo
Aqui no meio do povo
Vou chorar de novo
Aqui no meio do povo
Vou ligar amanhã bem cedo
Vou avisar minha mãe que estou voltando
Que estou indo pra casa
Vou dizer que depois de tantas partidas
Tantas noites mal dormidas
Seu filho está regressando
Cansado de sofrer
Cansado de chorar em bancos de bonde
Cansado de chorar no meio do povo
Cansado de procurar aqui nas ruas desta cidade grande
O que tem aí de sobra
Mãe
E a gente nem sabe
FELICIDADE

SANTA CRUZ DO SUL, RS, 1994.