quarta-feira, 8 de maio de 2013

TORPOR

Imagem: Cândido Portinari

Eu não queria ouvir o que ela tinha para falar. Como num transe, eu apenas via o mexer dos lábios murchos da ve­lha, sua dentadura frouxa, e o bailar de sua língua sabur­rosa. Tudo sem som. Eu não escutava nadica de nada. O buço da velha lhe sombreava o lábio, e se misturava com os pelos que lhe saíam pelas ventas. Vez em quando al­gum perdigoto da bruaca me atingia o rosto. Eu permane­cia imóvel. Eu não queria ouvir nada. Nadica de nada. No pátio um dos piás chutou a pelota, que entrou pela porta da cozinha, bateu no pé do fogão a lenha, depois no pé da mesa, espantou o gato que passava preguiçoso, veio gi­rando, girando, girando, até que esbarrou em mim, me ti­rando do torpor. Lá fora começava um chuvisqueiro finís­simo, parecido com neve. E eu que não queria ouvir o que ela tinha para falar escutei a última frase do falatório da velha espanhola: O velho está morto.




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